3.6.08

Amarelo Manga

O vazio pintado de amarelo, sem contorno. Um amarelo vivo, intenso, explosivo, sujo.Os contrastes de cores em uma Recife de prédios históricos e sobreviventes ao tempo. Ali o mundo não é preto e branco.O amarelo é manga e está nas paredes, nas ruas, nas pessoas, no lixo, está vivo, pulsando. A cor exemplificando tudo o que há de ruim, feridas purulentas, hepatite, dentes podres, enfim, o que não se quer enxergar, mas que está na nossa fronte, em nosso meio, ao nosso redor. Tudo à margem, excluídos, esquecidos, ignorados. Brasil, Nordeste, Recife, Periferia, assim se sobrepõe estratos fragmentados de identidades vivas do mundo real numa película corrosiva.

Todos condenados à liberdade, essa, colocada de forma antagônica como um eu-aprisionado. Pessoas solitárias, descrentes e desprovidas de valores, impulsionadas pelos seus instintos, conduzidas por suas paixões e alimentadas pelos seus desejos irrealizáveis. Uma busca eterna, porém, invisível. A força do amor, bicho instruído, nunca explicável e pouco palpável se revela em cada personagem.O amar errado, a decepção de não tê-lo. O homem por dentro, definido como sexo e estômago, exposto sem pele, sem vaidade, sem pudores. A sociedade estática, paralisada e submissa aos fatos, que sabe tão bem julgar e apontar seu dedo acusador para o outro, mas que nunca sabe explicitar soluções concretas. A pobreza em tons fortes, desconcertantes, enraizada em cada esquina de uma metrópole que não foge a regra. A parcimônia dos indivíduos perante a exclusão, as diferenças, as injustiças gritantes. A religião como fuga, como salvação, como punição para as vontades e desejos humanos recheados de crimes capitais. O homossexualismo, a dor de se-ser num mundo feio, contrário ao seu sexo, a sua essência. O estigma como ferida aberta. Os sonhos interrompidos e na maioria das vezes nunca realizados. A perversão exalada pelos poros dos sem escrúpulos e dos sem perspectivas. Um dia, onde às vezes tudo acontece de uma única vez, uma noite, onde todos guardam a cor do dia. A maior dor aqui, a da alma, a psíquica, se revela em cada personagem marginalizado, onde tudo é permitido exceto se esconder. Mesmo que assim, todos se percam num caminho, que de longe, já se vê que não tem volta. Forte, visceral, assim é a periferia de Recife, um retrato de uma sociedade cercada por edifícios luxuosos, casas monumentais, shoppings gigantes e no meio de tudo isso, o lixo, a revolta, a pobreza, a luta pela sobrevivência. Falo com propriedade por ser Recifense e ser mais próximo de tal realidade, mas salientando que mesmo nesse Recife manga, há uma cultura transbordante, imensurável e viva nascida exatamente dessa maquete exposta. E o que não é virtude é encontrado em cada ângulo. E o que é fato, não se argumenta. Soa como se tudo fosse sem governo e cada ser fosse seu próprio líder. “Entre todas as espécies que habitam o mundo, o homem é o bicho que mais merece morrer”. Essa frase para mim marcou o filme, porque ela brota da mente de um personagem sem ideologias, sem moral, sem ética. Mas ela vem de dentro, da sua ira, revolta e amargura , vem de forma visceral e sem questionamentos sobre o que é certo ou errado. Daí sua significativa relevância.

Tudo é tumultuado e ácido, todos buscam uma identificação com aquilo que cada um acredita ou finge acreditar. Os desvios de caráter e comportamentos não são premissas para pré-julgamentos. Numa cena, o próprio diretor deixa-nos com uma frase intrigante na cabeça: “O pudor é a forma mais inteligente de perversão”. O que parece estereótipos são aqui nesse universo real, pinturas do fracasso e do resultado de uma sociedade-moinho, que tritura a todos reduzindo tudo a cores. As inter-relações se dão sob a intolerância, as divergências de caráter, o desejo da carne, a traição como fuga para o que não se quer viver, a falta de propósitos e de sentido, a rejeição e a amargura. O abismo social e cultural é grande e une os indivíduos dando uma falsa idéia de coletividade e direitos iguais. E é extremamente incômodo vê cada um nessa tela de cores fortes que pintam um taxista necrófilo, que sente uma atração mórbida por cadáveres, uma evangélica reprimida e apática , um açougueiro inseguro e áspero, um padre incrédulo e politicamente incorreto, uma asmática conformada e nauseante, um homossexual sem escrúpulos , uma dona de um bar, solitária e sem perspectivas e uma série de outros personagens que enchem e esvaziam a tela nos deixando com uma sensação de impotência diante de tudo e todos. A vida é para ser comida como quem come uma manga madura e é exatamente isso que todos tentam fazer sem êxitos.

Num mundo onde a idéia de identidade está fragmentada, deslocada e deturpada não fica difícil visualizar a angústia que cada um carrega por não se enquadrar nos falsos parâmetros que são estabelecidos. O que talvez é, de fato, impressionante, é uma espécie de impulso vital que move cada grupo ou cada segmento social à uma adaptação, mesmo que incômoda e dolorosa, nesse mundo tão atrasado e já pós-moderno. E quem mais sente essa dor, são as ditas minorias, que sofrem com o olhar dos seus “iguais” , que os assistem em geral anestesiados. Porém quem de fato tempera o caldeirão cultural brasileiro são esses, excluídos, marginalizados, esquecidos, negros, índios, pobres, analfabetos, homossexuais, nordestinos, brasileiros, que reunidos em um só habitat sobrevivem face à intolerância e o descaso.

Nós temos tudo perto da gente, mas a maioria das pupilas estão dilatadas demais para enxergar. Às vezes incomoda, mas não mata se aproximar do que se quer sufocar. As fronteiras estão indefinidas, o homem nunca esteve tão sem rosto, tão sem chão, tão sem identidade. Um brinde ao amarelo. (Sérgio Roberto)

2 comentários:

LUIZINHO BRITO disse...

Adorei o texto, muito interessante e vem de encontro com o que eu penso tb!
abração!

Tiago Elídio disse...

mt legal o trecho do zeca! =)
o seu tb! obrigado pela visita!!
abração!